Por mais que às vezes imaginemos como é sentir a dor do outro, a gente nunca sabe como aquilo funciona dentro de quem realmente sente. Ter alopécia é o que mais afeta a minha autoestima porque simplesmente não tem cura. Ela pode não tirar a vida, como um câncer, mas ela tira da mulher aquela essência de beleza e feminilidade que a mídia e a sociedade esperam de nós. E dói, meu Deus, como dói. Talvez você me ache exagerada ou peça pra eu conversar com uma mulher que teve que tirar uma mama ou mesmo raspar os cabelos para fazer uma quimio. E eu já fiz isso, acredite! Me ajudou bastante a não sentir tão inferior assim, a ver que é só um detalhe meu que tem um “defeitinho de fabricação”, mas só eu sei o que sinto quando encaro o espelho.
Certa vez, quando ainda usava aplique, me apaixonei por um rapaz. Minha mãe aconselhou que eu contasse logo a ele que os longos cabelos loiros não eram meus e sim um aplique. Achei melhor o fazer logo e, ao contar, ele fez chacota dizendo: “aplique que nada, você usa peruca! Peruca igual ao Trump! Kkkkkk”. Eu chorei demais naquele dia porque, na época, eu sequer cogitava usar peruca. Me senti muito diminuída com as palavras dele, como se eu fosse um objeto quebrado sem conserto. O que me deixou mal foi perceber que, para ele, usar uma peruca parecia algo ruim. Aquilo me marcou demais. As pessoas têm preconceito com perucas, ao que me parece. Acham que são sujas, fedidas, mal feitas, coisa apenas para usar como fantasia.
Verdade seja dita
Quando comecei a namorar, uma das primeiras coisas que me veio em mente foi a questão do cabelo. Como eu contaria para um rapaz que é bonito, alto, magro – todo padrão – que a menina que estava com ele – além de gorda – usava uma peruca porque tinha uma doença no cabelo? Aquilo me matava um pouco todos os dias. Eu me sentia muito insegura, muito triste e com um medo do tamanho do Himalaia. E se, quando ele soubesse, não quisesse mais ficar comigo? E se ele fosse daquele tipo de cara que tem paixão por cabelos? E se ele me achasse problemática demais? E se sentisse nojo? Todo santo dia, ao tomar banho e depois arrumar o cabelo, isso ficava martelando na minha cabeça. Eu tinha que tomar coragem para contar a ele o meu maior medo e não fazia ideia de como ele poderia reagir.
Uma das coisas que fez esse moço me conquistar foi o fato de eu sentir, pela primeira vez na vida inteira, que eu podia ser simplesmente eu mesma ao lado dele. Eu não precisava jogar, nem fazer de conta “que isso” pra ter efeito “aquilo”. Diferente de quase todos os caras com quem já me envolvi, ele fazia questão de me dizer o quanto me achava bonita e reparava nas minhas roupas, na minha maquiagem, nos “penteados que fazia no cabelo”. Ele elogiava, fazia comentários. Ele prestava atenção em mim, me enxergava como eu era e deixava claro que gostava daquilo tudo enquanto estivemos juntos. O maior presente que ele me deu foi permitir que eu fosse eu mesma e simplesmente gostar daquilo como era.
Certo dia, numa manhã, acordei descabelada ao lado dele. A lace não estava muito bem presa porque acabei dormindo na casa dele sem querer. Pegamos no sono e capotamos pra acordar apenas no dia seguinte. Enquanto sentia ela dar uma “sambada” na minha cabeça, vi aquele cara todo bonito com cara de fofo olhando pra mim. Ele sorriu. Eu nunca tinha vivenciado aquilo, nunca. Algo dentro de mim gritou que era hora de abrir o jogo e contar a ele sobre o meu maior medo. Respirei fundo. Enfiei a cara no travesseiro e contei até dez. Subi o pescoço.
– Eu preciso te contar uma coisa. Algo que é extremamente delicado para mim e que me machuca demais. Eu tenho alopécia androgenética, que é uma doença no cabelo. É um tipo de calvície. Meu cabelo é fininho e ralinho, parece de bebê, mas eu tenho cabelo. Quando era loira acabei sofrendo um corte químico e meu cabelo ficou muito regaçado. Não dava mais para usar aplique, estava feio, tava dando super na cara, aí decidi comprar uma lace.
– O que é lace? – ele perguntou. Agora sim eu tremia, sentia o sangue correr com mais pressa, o estômago embrulhar. Meus olhos encheram de água. Era hora da verdade mesmo, agora não tinha mais como voltar atrás.
– É um tipo de peruca – respondi com a primeira lágrima escorrendo. – Elas são importadas, são caras, feitas de cabelo humano e têm bastante técnica e tal para a confecção delas. Não é algo sujo, nojento ou mal feito. Eu optei por usá-la para que meu cabelo se recuperasse da melhor forma possível, pois fica mais natural que o aplique, no momento. Daqui um tempo talvez volte a usar aplique, mas a lace é mais prática, fica mais natural e é mais fácil de colocar e tal.
– Mas se ela é melhor, por que você pensa em voltar pro aplique? Fica usando lace! Faça o que for melhor pra você e pro seu cabelo. Pra mim não faz a menor diferença. É você, é seu cabelo e pronto! – ele disse numa naturalidade absurda.
Foi nessa hora que comecei a chorar muito. Rapidamente meu cérebro processou que, para ele, não havia problema algum no fato de eu ter uma doença no cabelo e usar uma peruca. Eu me senti feliz, aceita, grata e muito, mas muito aliviada. Enquanto eu enfiava a cabeça no travesseiro pra chorar, ele veio e deu um beijo na minha cabeça, em cima da lace, como se fosse o meu cabelo mesmo. Percebi que os olhos dele brilhavam, como quem estava prestes a chorar comigo. Ele conseguiu entender o peso daquela dor para mim e conseguiu fazer com que eu me sentisse inteira perto dele, sem medo, sem julgamentos.
Tenho certeza que, no dia da minha morte, esta será uma cena que irá passar diante dos meus olhos naqueles momentos antes de irmos. Não, não é um exagero. Aquele dia me marcou de uma forma brutal que jamais conseguirei colocar em palavras. Esse foi o presente mais lindo e mais valioso que eu já recebi de um cara. Ninguém imagina o tamanho da minha dor com esse lance do cabelo, mas é algo que me machuca demais, mas demais mesmo. Sentir o carinho dele, sentir que pra ele o que importava não era nada físico e sim o que ele via em mim como um todo é algo que não tem preço.
No dia em que o relacionamento acabou, essa foi uma das coisas que eu repeti inúmeras vezes pra ele. Eu falava que ele jamais teria entendimento do quanto aquilo significou para mim, do quanto me marcou, do gigante bem que ele me fez. Eu não sei o que vai acontecer comigo e nem com ele, mas uma coisa sei: sinto muita gratidão por ele ter sido alguém que me fez ver que existem pessoas que podem sim gostar de mim com todos os meus problemas, defeitos e “aparência fora do padrão”. Sou grata por ter podido ser eu mesma, por não ter precisado jogar nenhum jogo de merda pra estar com ele. A gente ficou junto porque quis, porque bateu, porque pareceu bom. E foi, foi muito bom. Foi a melhor coisa que me aconteceu nos últimos anos e acho que ele foi o cara mais coração que já conheci. Mesmo que eu tenha feito coisas erradas sem querer por inexperiência, medo, afobação ou sequelas, ele me fez enxergar que tenho muito para melhorar, crescer e aprender ainda. Espero que eu tenha deixado algo de bom para ele também.
D., obrigada por ter me acolhido naquela manhã sem preconceito, por ter me aceitado como eu era. Saiba que sempre terei muito carinho por você e minha eterna gratidão pelo tanto que você me ajudou a sentir um pouco mais inteira e um pouco menos quebrada.
4 comments
Ana Paula Madureira
Paula saiba que como o D existem outros. Nós mulheres grandes e gordas merecemos ser bem tratadas, pois nosso corpo não pode ditar como será o tratamento por
Parte de outros. Imagino a sua dor em relação ao cabelo, mas calma, você tem muitas outras qualidades e essas devem ser o que as pessoas enxergam. Atualmente estou me permitindo ser feliz, sem me importar com a opinião alheia! E sim merecemos e devemos ser bem tratadas! Um beijo e adoro suas publicações.
Paula Bastos
Ana, muito obrigada pelas palavras de carinho e conforto! Eu espero mesmo que existam pessoas que ainda se importem em enxergar mais a nossa essência do que a nossa aparência. Me sinto feliz por ter compartilhado um pouco de mim com ele e por ter aprendido tanto, por levar um pouco do bem que ele me fez comigo! Fico extremamente feliz em saber que gosta de me ler. Muito obrigada!
Dani Pinocci
Que lindo Paula!!! Tem gente que aparece na nossa vida pra nos libertar dos nossos medos e traumas. É maravilhoso isso. Espero que no seu caminho vc sempre encontre gente assim. Bjo
Paula Bastos
Amém, Dani! Espero que eu realmente me cerque de boas pessoas! Um grande beijo <3